Testemunhos

“Conheci Isolino Vaz no verão de 49. A admissão a Belas-Artes passava então por uma prova de desenho de estátua. Alguém me aconselhara a tentar um período de aprendizagem no seu estúdio. Desenhava desde criança, mas a técnica estava limitada ao lápis Viarco sobre papel Costaneira, Almaço raramente, sob a direcção e ao colo de um tio que não sabia desenhar. Depois de me exercitar em caixas fechadas e abertas, cavalos de perfil e gatos frontais, sem idade para colo, orientara a produção ao retrato: família e vizinhos disponíveis.
Confrontava-me subitamente com a obrigatoriedade de um salto qualitativo aterrador: do Viarco ao carvão e do Almaço ao Ingres. As primeiras dificuldades começaram com a procura do material aconselhável, correndo ao acaso e em vão as papelarias de Matosinhos e do Porto. Mais tarde experimentei a fragilidade do carvão e a aspereza do papel. Definitivamente desmoralizado, apresentei-me no atelier de Isolino Vaz, em frente à Quinta de Nova Sintra, no sotão de uma dessas honestas casas portuenses, três pisos em cantaria e reboco cinzento, janelas de madeira de perfil elegantíssimo. Fui admitido e iniciaram-se as aulas. Éramos quatro e passávamos as manhãs entre Deuses e Imperadores de brancura imaculada. A janela da sala abria sobre o Rio Douro. O sol, o verde dos campos, e um ou outro solar semi-arruinado entravam por ali dentro, enquanto Isolino Vaz nos ensinava coisas inesperadas: como fixar o papel na prancheta, como apagar traços, errados com miolo de pão, como abrir um branco cristalino, como semi-cerrar os olhos ou apreender, braço estendido, as proporções exactas.
Tinha uma técnica de precisão impressionante: figuras nitidamente recortadas sobre o papel, em linhas rectas, zonas de sombra delimitadas por dois traços finíssimos, logo preenchidos pelo carvão deitado; rápido afago, por vezes com o flanco da mão, produzindo uma meia tinta de transparência absoluta sobre a textura inalterada do papel Ingres.
As duas primeiras semanas foram difíceis: o carvão afiadíssimo partia, a meia tinta manchava, a bola de miolo de pão agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses troçavam de nós, distorcendo constantemente o sorriso sereníssimo, aumentando a altura da testa ou revolvendo tumultuosamente os cabelos encaracolados.
No fim da segunda semana Isolino Vaz levou-nos à praia de Leça. Não se falou em desenho. Jogamos a bola e corremos contra o vento, até ao limite do fôlego. Deitados na areia, seguimos com olhos espantados as passagens constantes e cadenciadas de um Mestre sem fadiga, até que o céu e o mar se fizeram lílazes.
Provavelmente este exercício preparava uma nova aprendizagem: como fixar o carvão, que sempre ameaçava seguir a brisa da janela sobre o Rio Douro. Compramos um objecto incrivelmente engenhoso: dois tubos de metal de 3 milímetros de diâmetro e 100 milímetros de comprimento, articulados, para mais fácil transporte em caixa de cartão branco. Introduzia-se uma ponta no frasco de fixativo Legrand, comprado na papelaria Azevedo; na outra soprava-se com brandura. O sopro devia ser contínuo e de igual intensidade. Nas primeiras experiências as superfícies sombreadas do carvão tornavam-se baças, pontilhadas por estranhas manchas orgânicas, ou empastadas, ou brilhantes aqui e ali, ou amareladas, como verniz barato sobre as madeiras da Rua da Picaria, ou como o papel de um cigarro sem filtro e mal fumado.
Isolino exemplificava. No contra luz da janela uma fina poeira doirada pulsava, mansamente, sobre Atletas, Imperadores, Deuses e Cortesãs.
Pouco a pouco, quase sem dar por isso, o carvão começou a não partir, o papel a não manchar, o miolo de pão a manter a plasticidade, o fôlego a aumentar. E a confiança. O Rio Douro tornara-se tranquilíssimo, e assim a amizade entre nós. Todas as manhãs seguíamos os altos muros de Nova Sintra, passávamos o posto de transformação modernista, as janelas ritmadas da Escola do Barão, entre tílias, japoneiras e glicínias, pensando que talvez fossemos Artistas.
No dia do exame Isolino Vaz levou-nos à Biblioteca de S. Lázaro. O Claustro estava cheio de gente “com habilidade”. Pela porta entreaberta víamos os cavaletes de pinho, dispostos em torno de um tímido Jovem Augusto.
Tiras pelo menos dezoito — disse-me Isolino Vaz. Tirei bastante menos, e também muito mais: ânsia de limpidez”.
Álvaro Siza, 1990

“Isolino Vaz é um retratista de traço fino e firme, como o seu carácter, que restitui em síntese o momento absoluto onde a autêntica personalidade do retratado acaba por transparecer do invólucro que teimosamente a fechava aos olhos profanos.
Virtuoso e fiel ao modelo, linearmente disciplinado, desprezando o fácil, que comodamente seduz, mas que trai; fugindo à força aparente que é mistificação, atento mais à essência do que aos acidentes, mas correlacionando-os na medida em que o functional dá a justa visão do potencial.
Nem o desnudamento gráfico que não deixa enxergar a verdade à força de contenção, nem uma retórica de linhas a explicar demasiadamente; apenas a justa medida da experiência clássica aliada à inquietação da descoberta estética.
Pintor humano, mais que social, faceta corpos e almas à guisa de escultor e deixa escorrer em tons baços toda a angústia do homem do nosso tempo. Pode dizer-se que a sua paisagem é só humana, facetadamente humana.
Geométrico na composição, disciplinando os volumes, planos e ângulos ao imperativo das leis físicas e às solicitações estéticas, este artista mantém vivo o diálogo entre o sonho e o real.
Ilustrador, recria almas e momentos sem abdicar da sua personalidade, apenas a empresta plásticamente ao romancista, ao poeta, para que eles se vejam para além da palavra, no mundo de sugestão que começa onde a palavra finda.
Abraça-o muito sinceramente o
Alberto Uva
Porto, 1-3-59″

CINQUENTA ANOS DE FIDELIDADE
“Uma parte importante do coração da minha juventude pertence a Isolino Vaz e à sua obra; através dos volumes, dos ângulos, da luz sombria e da luminosa sombra do seu transfigurado realismo, os meus olhos descobriam perturbadamente o lado obscuro das coisas que só a inocência da arte revela.
A obra de Isolino Vaz foi então isso para mim: revelação. E exemplo do radical inconformismo donde nascem, como na obra de Isolino Vaz,emoções temíveis. Eram dias difíceis em que a felicidade era feita de infelicidade e de solidariedade. A obra inquieta de Isolino testemunhava que não estávamos sozinhos e partilhava connosco o confuso sentimento épico da esperança.
Porque na geometria dessa obra, mais do que mera expressão, e mais do que reprodução, vibrava, e vibra, o próprio efémero mistério da realidade, o que quer que seja a realidade. O modo como, sob uma luz obstinadamente racional, os fragmentos do mundo exterior se tornam na pintura de Isolino harmonia e sentido do lado de dentro do mundo, fizeram naturalmente dela o caminho mais curto para as inseguras interrogações que irreprimidamente pulsavam no grande coração colectivo. A Arte serve também para isso, para nos confrontar e para, em tempos de angústia, testemunhar por nós perante nós próprios. Por essa fidelidade, por essa desmesurada generosidade, quero que este depoimento seja, mais do que uma improvável avaliação crítica, sobretudo também um testemunho emocionado pela Arte de Isolino Vaz. Isto é, pela Arte.” (Manuel António Pina, 1990)


“Considero uma obra admirável a interpretação que Isolino Vaz fez de “Emigrantes”, não só no seu quadro definitivo, mas também nos estudos que o precedeu. É um pintor de grande talento. E, entre as suas muitas qualidades, possui aquela que indica o verdadeiro artista: a insatisfação” (Ferreira de Castro, 1956).


David Mourão-Ferreira, que o mestre retratou em 1991, mandou-lhe um cartão, no qual escreveu: “… Com que palavras agradecer-lhe o excelente retrato que de mim fez? Além do afetuoso MUITO, MUITO OBRIGADO! que do coração lhe exprimo, permita-me que lhe ofereça um exemplar da última edição de Um Amor Feliz…”.